O Canto das Irias: um olhar sobre a humanidade (Parte I)

“Agora depois de tudo o que vivi posso dizer que as feras não existem! O que existe é o homem, pleno, que foi ferido pelo pecado, mas que é livre e pode diariamente com coragem e perseverança escolher a vida e a felicidade. Fazendo assim das suas feridas uma grande riqueza. Uma conclusão pessoal: Não há condição humana que não possa ser restaurada pelo amor, não há animalidade que não possa ser educada e não há ódio que não esconda dentro de si uma enorme sede de amor que precisa de ser assumida e trabalhada. E que toda a graça que precisamos para isso nos é dada na cruz. O mundo hoje parece mais simples para mim, o homem também! O amor real é o único capaz de gerar vida! ” Fala final do Homem no Canto das Irias
            
Amados, a partir de hoje vamos falar de uma peça de teatro da Comunidade Católica Shalom que me marcou bastante na minha caminhada e que já tocou a tantas pessoas pela maneira verdadeira, chocante e ao mesmo tempo apaixonante que fala do homem e da sua relação com Deus. Poucas vezes vi algo no domínio das artes que me falasse tão profundamente ao coração, que é um retrato quase brutal da humanidade que na sua liberdade e desejo de felicidade termina por tantas vezes se desvirtuar. Acho que jamais havia visto em outro lugar de maneira tão clara em palavras a dinâmica de um Deus amoroso que vem até nós para fazer novas todas as coisas, ou melhor, para restaurar aquilo que no fundo sempre foi a essência da humanidade. Diante da minha realidade pessoal e de algumas coisas que tenho hoje em meu coração eu escolhi essa citação do final do roteiro da peça para iniciarmos, uma situação que vem falar muito de como vemos o mundo e contrastar com o olhar de Deus.
            As Irias na peça são feras, essencialmente representam o pecado, e o homem se envolve com elas a tal ponto que assume a mesma forma até ser resgatado por Cristo. Uma vez resgatado, ele passa a ver esse mundo que lemos acima, um mundo sem feras, mas povoado por uma humanidade ferida, marcada, por vezes desfigurada, mas livre e que pode ser mudada pelo amor de Deus. O homem resgatado por Cristo passa a, através da profunda adesão da sua liberdade, comungar desse olhar, mas eu me pergunto as vezes onde eu estou nessa caminhada? Será que eu sou capaz de ver a humanidade ferida ou que eu ainda vejo feras, criaturas essencialmente más?
            Acho que eu posso seguramente dizer que se a luz de Cristo não ilumina o meu olhar, o mundo é povoado por feras. Feras comunistas que insistem em ver tudo em termos materiais e pregam um paraíso terrestre que não existe, feras que atentam contra a vida em seus estágios mais inocentes com o aborto e a eutanásia, feras que se deixam dominar pelos vícios do álcool e das drogas desperdiçando suas vidas, feras que destroem a família e a própria identidade do homem com suas ideologias perversas e seu relativismo, essencialmente, feras. Nesse mundo de feras, quem sou eu? Qual a fera que ruge no meu interior? Porque se todos são feras, o que me faz diferente? Será que eu não tenho os meus erros, as minhas falhas? Ver um mundo de feras e nós como outra coisa é ao mesmo tempo omitir o nosso pecado e destruir a dignidade do outro, reduzir a sua natureza aos seus pecados e olhar para ele com os meus olhos humanos que por tantas vezes são destituídos da esperança da salvação. O homem da peça ao falar essas palavras acima vê o mundo não mais somente com os seus olhos mas a luz da experiência profunda de ter sido amado, querido, salvo! A experiência do amor de Deus concreto na pessoa de Jesus vem precisamente nos mostrar pessoalmente que não somos feras, mas criaturas feridas, e essa visão não é somente um olhar sobre mim mesmo, mas um olhar sobre a humanidade, é ver que todas essas “feras” acima não são verdadeiras mas sim sintomas de feridas na história de uma pessoa amada por Deus e que precisa redescobrir a sua vida e a sua dignidade através do amor, desse amor que é a única força capaz de mudar o mundo.
            O desafio que a experiência com Deus instiga no coração do homem é precisamente abraçar um novo modo de agir congruente com esse novo olhar que nos foi dado, é ir ao encontro da humanidade ferida e mostrar que a esperança da salvação, da liberdade plena e de uma vida nova existe e é acessível na medida em que nos sabemos amados por Deus e decidimos modelar a nossa vida nesse amor. Mas precisa partir de nós que fomos tocados por esse amor. O mundo ainda vê feras, que ferem a si mesmas e aos outros na busca de saciar a sua sede de liberdade, felicidade e plenitude que sempre termina no vazio, e esse mundo precisa de nós. O mundo precisa desse olhar transformado por Jesus, dessa vida disposta a viver o Evangelho com o auxílio da graça, dessa liberdade disposta a cada dia ir ao encontro, escolher sempre viver por amor e amar, ser de maneira viva essa ferida do Ressuscitado que toca a humanidade.
            Que a nossa experiência pessoal com Deus possa nos conceder sempre esse novo olhar que nos faz ver o ser humano inteiro em sua dignidade (por mais ferida que esteja) e nos impele ao encontro da humanidade para anunciar o amor verdadeiro, a liberdade plena e a felicidade eterna que jorra das chagas da Cruz de Cristo.
            Shalom!

                                                       
                             (Rodrigo Damásio - Minions Católicos)

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