(Por Rodrigo Damasio)
Louvado seja nosso Senhor Jesus
Cristo, para sempre seja louvado!
Irmãos,
essa frase no título é um questionamento frequente que São Francisco de Assis
trazia consigo em suas orações e que eu decidi trazer para vocês após a leitura
do livro “Irmão de Assis” de Ignacio Larrañaga. Durante o livro, em vários
momentos de oração e de intimidade com Deus, Francisco repetia várias vezes
esse questionamento, que mais do que palavras, expressavam um desejo de
conhecer a si mesmo e ao seu Criador, de conhecer o seu lugar dentro da obra
divina e assim se entregar plenamente a Deus.
Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa;
depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois,
conhecerei como sou conhecido. (1 Cor 13, 12)
Esse versículo da epístola aos
Coríntios pode ilustrar bastante bem o desejo de Francisco de conhecer a Deus e
assim conhecer a si mesmo, desejo esse que resultou na vivência do evangelho
que vemos na vida de São Francisco, numa santidade tão transfigurada a Cristo
que recebeu em sua carne as feridas do Salvador. Mas isso foi um processo
longo, que exigiu que Francisco tivesse a disposição de olhar para si mesmo com
verdade e sinceridade, exigiu que ele fosse capaz de em Deus ver a si mesmo
como era e aceitar a sua condição, que nem sempre lhe era agradável aos seus
olhos ou aos do Pai. Mas esse olhar para si mesmo foi o que fez a diferença na
vida de Francisco.
Para poder entender a evolução de
Francisco e colocar a nós mesmos nessa história para aprender com seu exemplo,
precisamos tomar a figura de Francisco em duas fases: Francisco, filho
de Pietro Bernardone e Madonna Picca, e Francisco, o pobre de Assis. Na
primeira fase vemos um jovem que se encaixaria perfeitamente numa sociedade
como a de hoje, um homem filho de burguês, ambicioso, bem-educado, belo para os
padrões do mundo, extrovertido, considerado por muitos como o líder da
juventude boémia de Assis. O filho de Bernardone era avesso aos pobres, tinha
verdadeiro desprezo por leprosos, e era atraído por todos os aspectos da
mundanidade que faziam parte de seu cotidiano, e em certa medida sedento pelas
glórias do mundo que o levariam para a guerra que nunca chegaria a lutar. O
pobre de Assis, um homem que tinha tido uma experiência profunda com Deus, que
buscava a cada dia mira-lo em sua face e se conformar com a imagem do
crucificado era basicamente o oposto do que fora em seu passado. O encontro com
Deus, com a sua verdadeira condição em Deus, transformou Francisco no amigo dos
pobres, no amante dos leprosos e salteadores, numa imagem ambulante do
evangelho de Cristo.
Mas entra a pergunta: “como foi operada tamanha mudança na vida de
uma pessoa? Como alguém consegue passar a amar de tal maneira, a ser tão
diferente”? Francisco, ao fazer a Deus a pergunta que temos como título
desse texto, ia adentrando cada vez mais profundamente a sua verdade, ia
olhando com clareza a face do Altíssimo e constatando um fato fundamental
acerca de si mesmo: que era miserável, pequeno, pecador, necessitado de amor e
de misericórdia. O Povorello contemplava
diante da altura de Deus a sua própria pequenez, as suas manchas diante da suma
pureza, as suas chagas diante da fonte de toda a cura. Francisco contemplou na
face de Deus a verdade da condição humana, e o enxergar essa verdade muda o
olhar do homem de uma maneira tão sincera e profunda que o mundo que se vê não
é mais o mesmo. O filho de Bernardone olhava com repulsa para os leprosos via
neles criaturas monstruosas, o pobre de Assis via filhos de Deus que carregavam
sua lepra na carne enquanto ele carregava a sua na alma. O filho de Bernardone
se revestiu com sua brilhante armadura para lutar pelas glórias do mundo, o
pobre de Assis se comprometeu com a Dama Pobreza para proclamar as glórias de
Deus. O filho de Bernardone, sem hesitar, poderia ser violento com salteadores,
o pobre de Assis olhava-lhes a alma e via a sua sede de amor e necessidade de
misericórdia.
Trazendo isso para nós,
especialmente nos dias de hoje, é visível como é fácil ser filho de Bernardone.
É fácil apontar o dedo para os erros dos outros, fácil me enojar com o pecado e
a feiura alheia, fácil ser indiferente à pobreza dos meus irmãos, fácil tomar a
minha posição elevada, me julgar perfeito, e ser oficial de justiça da vida
alheia. É incrível como é fácil julgar quando não se conhece a si mesmo, fácil
clamar pela misericórdia divina para mim e julgar os erros dos meus irmãos, é
simples demais me revestir de julgamentos, ignorar minhas chagas e não amar.
Mas essa não é a minha verdade. Simplesmente não é. E se eu me prendo nas
minhas ilusões sobre quem eu sou me revisto de julgamentos para com meus
irmãos, e vivo no engano. Ah, meus irmãos, como é difícil a nós sermos pobres
como Francisco. Como é difícil olhar para os nossos irmãos com a ternura de
olhar que Deus olha para nós, ver eles não como inimigos ou monstros, mas
criaturas feridas por uma chaga que também é minha. O encontro com a face de
Deus, que Francisco experimentou com tanta intimidade e profundidade, nos leva
a ver a nós mesmos com todos os nossos erros, com todas as limitações, com
todas as fraquezas, com tudo que pertence a minha natureza manchada pelo
pecado, a minha natureza ansiosa por amar e necessitada da misericórdia de
Deus. Mas não só isso, me leva a compreender que essa natureza não é só minha,
que todos nós carregamos a nossas chagas, nossa lepra, nossos furtos e
mentiras, e a perceber que eu, sem um minuto da graça de Deus, sou capaz de
todo o mal que acho mais horroroso no meu irmão.
Irmãos e irmãs, esse olhar volvido
ao alto que nos revela a nós mesmos na nossa verdade e nos permite contemplar o
altíssimo também tem para nós um chamado: Amar. Amar com simplicidade, amar
além de noções de merecimento (ou você por acaso pensa que merece o amor que
Deus tem por você?) mas com consciência da necessidade de ser amado que todos
temos, amar porque eu fui criado para isso, porque antes fui amado pelo Amor. O
mundo já tem tantos oficiais de justiça, tantos juízes e curiosos, que não
precisa de nós para isso. Em especial nesse ano da misericórdia, o chamado divino
é o mesmo feito a Francisco, o mesmo que ecoa pela eternidade no coração dos
homens que se encontram com o Sumo Bem, é amar, é ser chaga viva e aberta da
misericórdia de Deus, ser amor concreto e palpável num mundo que cada vez mais
se perde por falta de amor, que se flagela com a violência e se molesta em
prazeres passageiros. Somos chamados a ser em verdade, sinais de um amor que
não passa e que em verdade nos reconcilia com nós mesmos e com toda a criação
na orientação original para o Criador. Mas nós não podemos encarnar essa
realidade sem sermos conscientes de quem somos. Não podemos amar o outro sem
reconhecer que na nossa condição manchada nós fomos amados, sem reconhecer que
somos meras criaturas chagadas. Deixemos para Deus a missão que lhe pertence de
julgar, pois Ele a todos conhece, e nos encarreguemos de adentrar no seu amor
para conhecer a nós mesmos e, conhecedores da nossa verdade, amar.
Que imersos na sombra do Altíssimo,
possamos reconhecer a sua grandeza e a nossa pequenez, e assim sair pelo mundo
dando de graça o amor que de graça recebemos.
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