A Sagrada Escritura: o amor de Deus através dos séculos

(Por Rodrigo Damasio)

"Muitas vezes e de diversos modos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos" Hebreus 1, 1-2.

Amados, hoje nós vamos falar um pouco sobre as duas grandes divisões dentro da Sagrada Escritura: o antigo e o novo testamento. Optei por começar essa partilha com essa citação de São Paulo para deixar uma coisa já clara: desde o princípio existiu o esforço da parte de Deus de dirigir a palavra ao homem, de guiar os seus caminhos, reuni-los "como a galinha recolhe seus pintainhos debaixo das asas" (cf. Lc. 13, 34). Na citação fica também claro que Deus se utiliza de diversos métodos durante a história da salvação para se dirigir ao homem, passando pelos patriarcas e profetas até que quando "chegou a plenitude do tempo" (cf. Gal. 4, 4) veio intervir diretamente na história da humanidade através de seu filho.
Estabelecidos esses pressupostos, entremos um pouco no Antigo Testamento (Antiga Aliança). O Antigo Testamento é marcado pela caraterística fundamental da espera pela ação de Deus, da vivência do presente na constante esperança escatológica da libertação de Israel. Nesse contexto vemos um relacionamento da humanidade com Deus que é próximo, onde Deus olha para a miséria do seu povo (cf. Ex. 3, 7), mas que é marcado em larga medida pela inconstância do homem, que repetidamente questiona a Deus, que se deixa distanciar, que simplesmente se permite seduzir pelas coisas passageiras, que cansa de esperar pelas promessas de Deus. A essa mesma humanidade infiel, Deus continua insistentemente a falar por meio dos profetas, mas as palavras são muitas vezes enigmáticas, ou por vezes sem sentido tendo em vista o que era a realidade presente daquele povo.
Ainda no Antigo Testamento, existe algo que eu gostaria de deixar marcado. A percepção que o homem tinha de Deus fica marcada pela termologia com que se referem a Ele, que era sempre o "Senhor dos Exércitos", "Deus de nossos Pais", "Iahweh", deixando claro e evidente que entre Deus e a humanidade havia um abismo e que as forças humanas eram empregadas em encurtar esse abismo fazendo o que era agradável a Deus (em larga medida, com suas próprias forças). Um último elemento nessa nossa análise curta e incompleta que eu queria apontar como sendo essencial a toda a construção da lógica veterotestamentária é a questão da Eleição, de Deus que vem a Israel e diz "eles serão o meu povo e Eu serei o seu Deus" (cf. Jer. 32, 38), que de certa maneira os consagra (no sentido bíblico de segregação) e os coloca de maneira distinta diante das nações, deixando clara uma certa vocação dada ao povo de Israel de ser o sinal para o Deus verdadeiro.
Para falarmos do Novo Testamento (Nova Aliança), iniciaremos amparados pelas palavras do Santo Padre, que nos diz que "Jesus é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé Cristã parece encontrar nessas palavras a sua síntese" (cf. Misericordiae Vultus, bula de proclamação do ano jubilar da misericórdia). Jesus é a grande novidade, a boa nova. Jesus, em sua pessoa enquanto Verbo Encarnado, expressa não mais a espera, mas a chegada do Reino de Deus, a realização da dimensão escatológica expressa durante todo o Antigo Testamento. A vinda de Jesus altera a dinâmica do relacionamento homem-Deus, introduzindo a dinâmica de um Deus que não é mais somente o Deus dos meus pais, mas o Deus que é MEU Pai, Deus que não é mais somente Iahweh, mas Emmanuel (cf. Isaías 7, 14). Jesus, com sua própria vida, nos revela o sentido das palavras escritas no Evangelho de São João "Pois Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único, para que todo que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (3, 16).
Tão importante quanto o que já foi falado é o fato de que Jesus representa uma realização escatológica completamente diferente do que era esperado, pois mostra a viragem do "amor pela Lei" para a "lei do Amor", mostra um Deus que veio para os pecadores, e instaura uma lógica de primazia da graça, onde Deus se manifesta para atrair o homem a si diante da incapacidade do homem de chegar a Deus. Jesus é Deus que manifesta a sua glória na simplicidade, que se despoja da realeza e se manifesta na humildade, que assume a nossa condição e mostra uma compassividade que é incompreensível ao homem. Jesus é, contudo, não a anulação do Antigo Testamento, mas o seu perfeito cumprimento, Aquele a quem as profecias enigmáticas faziam referência, aquele que em vida não foi plenamente compreendido, mas que com sua paixão, morte e ressurreição, nos oferece a salvação e a chave profunda de entendimento para as suas palavras e as escrituras como um todo.
O Catecismo da Igreja Católica nos afirma que "Por meio de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus pronuncia uma só palavra, seu Verbo único, no qual se expressa por inteiro.", ou seja, Jesus, o Verbo Divino, é essencialmente aquele a quem toda a escritura faz referência, construindo uma revelação onde o Novo Testamento é totalmente pavimentado pelo Antigo e o Antigo é plenamente realizado no novo, constituindo uma história de salvação que é fundamentalmente uma só, que possui um só sujeito e um só destinatário, sempre envolvendo Deus e o homem num relacionamento de amor profundo.
Enfim amados, podemos chegar a uma conclusão fundamental sobre a Sagrada Escritura: que ambas as Alianças constituem uma única história de amor. Na figura de Jesus Cristo, Deus se revela inteiramente e nos permite compreender toda a Escritura a luz da sua pessoa. Mesmo sem espaço hábil para fazer uma reflexão mais profunda, a frase de João Paulo II "o amor me explicou tudo" pode sintetizar a maneira como a encarnação do Verbo se torna a chave de entendimento da Escritura e assim revela nos conduz ao pleno entendimento do caminho da humanidade para Deus, caminho que na pessoa de Jesus deixa de ser somente o de um povo eleito rumo a terra prometida e passa a ser o caminho de filhos para a Casa do Pai.
Com essa reflexão, não deixo questionamentos, mas espero inspirar um desejo similar ao que surge em meu coração, de louvar e bendizer a Deus que nunca desistiu de nós, que nos buscou, e que rompeu roda a indiferença para se revelar de maneira pessoal, para nos constituir em sua família. Que possamos olhar para a Bíblia não simplesmente como um livro, mas como parte da nossa história, da história de amor de Deus conosco, e que possamos nos aproximar dela através dos olhos e do coração de Jesus, que é Aquele que faz arder o nosso coração enquanto nos fala das escrituras (cf. Lc. 24, 32).

Que na unidade das Escrituras nós saibamos sempre ouvir a ternura da voz de Deus que se dirige amorosamente ao nosso coração! Shalom!

Comentários