(Por Rodrigo
Damasio)
“Na tarde do mesmo dia, que era o primeiro
da semana, os discípulos tinham fechado as portas do lugar onde se achavam, por
medo dos judeus. Jesus veio e pôs-se no meio deles. Disse-lhes ele: A paz
esteja convosco! Dito isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Os discípulos
alegraram-se ao ver o Senhor. Disse-lhes outra vez: A paz esteja convosco! Como
o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós. Depois dessas palavras,
soprou sobre eles dizendo-lhes: Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem
perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes,
ser-lhes-ão retidos. ” Jo 20, 19-23
Amados, desejava ardentemente que
vocês pudessem ver o meu coração nesse momento, creio que seria uma maneira
muito mais eficaz de comunicar aquilo que pretendo do que minhas palavras. Hoje
entraremos um pouco no mistério da misericórdia através das marcas que foram
deixadas em mim pela JMJ 2016 (em que tive a honra de estar presente) e das
palavras do Santo Padre durante esse evento e a viagem apostólica a Polônia
como um todo. Especialmente nesse ano jubilar, falar de misericórdia é tocar de
maneira sensível e concreta no coração de Deus, é permitir moldar-se,
transformar-se na imagem de um Deus que desejou caminhar no meio de nós, que
fez a plenitude da lei consistir no amor, que rompeu as barreiras do pecado e
da indiferença para nos atingir. A própria etimologia da palavra misericórdia
(que é a junção de duas partículas em latim significando compaixão pelo
coração) reflete essa dimensão de Deus que é tocado, movido pela miséria do
coração do homem, nos introduzindo ao fato de que a misericórdia sempre é, e
precisa ser, uma realidade dinâmica.
Voltando-nos para esse fragmento da
Palavra, o Papa Francisco nos diz “Jesus
entra lá, coloca-se no meio e leva a sua paz, o Espírito Santo, e o perdão dos
pecados: numa palavra, a misericórdia de
Deus”. Nessas palavras do Santo Padre e nesse texto da palavra, nós
somos conduzidos ao centro da questão da misericórdia: a gratuidade, o dom de
Deus. Sendo bastante racionais, o que fizeram os discípulos para merecer tudo
isso? Essas mesmas pessoas haviam abandonado, renegado e traído Jesus. Mesmo
diante de tantos anúncios de que voltaria, eles sucumbiram ao medo, se fecharam
na insegurança, se comportaram como se tudo aquilo que viveram com o Mestre
tivesse sido um passado distante, ou mesmo um mero fardo que hoje os fazia
serem perseguidos. Mas a misericórdia penetra a vida e a história do homem de
uma maneira que não é racional. A misericórdia choca-nos precisamente por ser
gratuita, por ser fruto de um amor que pela sua própria natureza é fiel e não
pode negar-se (cf. 2 Tm 2, 13), não pode deixar de amar e perdoar. Diante do
medo, da negação, do receio, de tudo aquilo que deixa as nossas portas
fechadas, Jesus demonstra a sua misericórdia e simplesmente adentra a nossa
realidade, restaura nossa dignidade, vem tocar as nossas feridas e como diz o
Papa Francisco “deseja aproximar-Se da vida de cada um, percorrer o nosso
caminho até o fim, para que a sua vida e a nossa verdadeiramente se encontrem.
A gratuidade da misericórdia deseja
sempre penetrar a nossa vida, a cada momento, a cada instante, para nos lembrar
de uma verdade fundamental “esta é a
nossa estatura, esta é a nossa identidade espiritual: somos filhos amados de
Deus, sempre. ”. Jesus olha para a nossa debilidade, para as nossas falhas,
para a nossa infidelidade, e é capaz de ver além, é capaz de ver um filho de
Deus, muitas vezes cansado, machucado, sujo, mas sempre um filho de Deus. Ao
reconhecermos a nossa miséria, nos tornamos dignos da misericórdia de Deus, nos
tornamos objeto desse amor infinito, desse perdão sem medidas, que deseja,
sempre, nos tomar pela mão, nos levantar, nos purificar e nos conduzir a
verdade mais profunda de nós mesmos. Como o Santo Padre muito bem colocou “o olhar de Jesus ultrapassa os defeitos e
vê a pessoa, não se detém no mal passado, mas entrevê o bem no futuro, não se
resigna perante os fechamentos, mas procura o caminho da unidade e da comunhão;
único no meio de todos, não se detém nas aparências, mas vê o coração. ”
Santo Agostinho dizia “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso
coração anda inquieto enquanto não descansar em ti. ” e essa frase carrega
uma verdade profunda: a natureza humana tem encarnado em si um impulso que
conduz ao Outro. O ser humano, uma vez que se encontra com a alteridade divina
percebe que ela o conduz a outro dinamismo, se focar no seu próximo, ser
envolvido pela dinâmica da gratuidade divina para dar de graça o que de graça
se recebe (cf. Mt 10, 8). Portanto nós, mirados por esse olhar amoroso,
alcançados por essa misericórdia infinita que sempre se renova, recebemos o
mesmo chamado que os discípulos (cf. Jo 20, 21), somos enviados para da mesma
maneira que Jesus o foi. Esse chamado, antes de ser algo isolado ou exclusivo,
é a resposta natural da natureza humana quando confrontada com o amor de Deus.
Usando termos que recentemente ouvi da boca do Moysés, depois de sermos
“misericordiados” por Deus, é necessário sair para “misericordiar” o mundo!
O impulso que o ser humano tem para
com Deus e para com o irmão é demonstrativo de uma coisa: Deus nos destina a
oferta. A misericórdia recebida só é
plenamente fecunda na medida que se torna oferta, dom de sim mesmo. O Papa
Francisco, logo nos primeiros momentos na Cracóvia colocou umas palavras que
ficaram muito fortes em meu coração, ele nos disse “Felizes são aqueles que sabem perdoar, que tem um coração compassivo,
que sabem dar o melhor aos outros... Não o que sobra, mas o melhor!” e
quando rezava com isso percebia quantas vezes a nossa oferta é débil, feita
pela metade, baseada em conveniência, em comodidade (falo isso tudo também para
mim mesmo). Quantas vezes a minha oferta não é seletiva, limitada a aqueles que
gosto ou ao que eu quero oferecer a Deus? Quantas vezes eu não prefiro viver a
minha vida para mim, guardar Deus para mim, meus dons para mim, minhas graças para
mim? Quantas vezes não sou tentado a transformar a gratuidade da misericórdia
em uma posse minha, em algo obtido por mérito, distante de tantos que não se
dedicam a Deus. Tudo isso é sintomático de um coração “ensimesmado”, um coração
que esqueceu que o parâmetro da nossa oferta é o da totalidade e da gratuidade
demonstrados por Jesus, um coração que passou a crer depois de um tempo de
caminhada que a misericórdia é coroa de perfeição e não alimento dos
miseráveis. O Papa Francisco nos propõe precisamente o contrário ao dizer que “um coração misericordioso tem a coragem de
deixar a comodidade; um coração misericordioso sabe ir ao encontro dos outros,
consegue abraçar a todos”.
Na gratuidade e na totalidade, o
Santo Padre afirma ainda que “somos
chamados a seguir Jesus Crucificado em cada pessoa marginalizada, a tocar a sua
carne bendita em quem é excluído, tem fome, tem sede, está nu, preso, doente,
desempregado, é perseguido, refugiado, migrante. Naquela carne bendita,
encontramos o nosso Deus”. Sendo a misericórdia um movimento dinâmico na
direção da miséria, a destinação da nossa resposta a misericórdia de Deus é
clara, devemos ir aos que mais necessitam, aos que padecem nas pobrezas
materiais e espirituais, aquele que se afunda na lama da sujeira ou na do
pecado, aquele que tantas vezes dizemos que não tem jeito, ele é o objeto da
nossa oferta, ele é destinatário da misericórdia. Sair de si mesmo significa se
ofertar a todos, TODOS! Deixar de lado o amor eletivo, os preconceitos, tudo
aquilo que nos impede de corresponder de maneira concreta e consistente a
misericórdia de Deus para conosco para ver, em cada irmão que sofre, uma
oportunidade de amar, de ser misericordiosos, de ser sinal vivo do amor de
Deus.
Sei que as propostas que faço aqui,
e que ouvi antes de Francisco, não são fáceis, é um caminho que exige
determinação, violência de coração e uma vontade, sempre renovada de amar a
Deus, mas esse é o caminho que nos é ofertado por Jesus. O dom de Deus para nós
só é fecundo na medida que se torna oferta, o ser humano só é feliz na medida
que sai de si e se direciona a Deus e aos irmãos. Fora disso, não existe
felicidade verdadeira. Nossa verdadeira felicidade está em unir a oferta das
nossas vidas a vida ofertada de Jesus, e assim ser um sinal vivo de amor e de
misericórdia, recebido e transbordado, numa dinâmica constante de dádiva e
oblação, gratuidade e oferta. Neste caminho de certo haverão quedas, mas o
próprio Francisco nos conforta e nos diz que “a mão de Jesus está sempre pronta a nos levantar quando caímos”, e
seguimos certos de que essa mão terna, esse olhar amoroso, serão o nosso
sustento diante da nossa limitação e debilidade. No carisma Shalom, não existe
quem nunca tenha ouvido o Moysés dizer “vale
a pena ofertar a vida a Deus!” e essas palavras carregam a verdade profunda
da felicidade humana. Tenhamos coragem de sermos felizes! Coragem de abraçar o
amor e a misericórdia de Deus em nós e de ser humildes instrumentos nas mãos de
Deus! Coragem de fazer a oferta violenta, aquela que é difícil, mas que agrada
a Deus! Coragem de ser, na nossa família, no nosso trabalho ou nos estudos, e
em todo o mundo, uma chaga aberta e transbordante da misericórdia e do amor
recebidos de Deus e ofertado aos irmãos!
Shalom!
“Agora, todos juntos, peçamos ao Senhor:
Lançai-nos na aventura da misericórdia! Lançai-nos na aventura de construir
pontes e derrubar muros (cercas e arame farpado); lançai-nos na aventura de
socorrer o pobre, quem se sente sozinho e abandonado, quem já não encontra
sentido para a sua vida. Impele-nos, como a Maria de Betânia, para a escuta
daqueles que não compreendemos, daqueles que vêm de outras culturas, outros
povos, mesmo daqueles que tememos porque julgamos que nos podem fazer mal.
Fazei que voltemos o nosso olhar, como Maria de Nazaré para Isabel, para os
nossos idosos a fim de aprender com a sua sabedoria. Eis-nos aqui, Senhor!
Enviai-nos a partilhar o vosso Amor Misericordioso. Queremos acolher-Vos nesta
Jornada Mundial da Juventude, queremos afirmar que a vida é plena quando é vivida
a partir da misericórdia; esta é a parte melhor que nunca nos será tirada. ”
Papa Francisco na Acolhida aos Jovens, JMJ 2016
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