Quem és tu, Senhor, e quem sou eu?

(Por Rodrigo Damasio)

Reflexões sobre discernimento vocacional a luz de Francisco de Assis (Parte 1)

“Deus quando ama e justamente porque ama, chama. A vocação é expressão de amor, e está unicamente motivada pela intenção amante de Deus e narra tal amor como a mais secreta identidade de Deus, e ao mesmo tempo como a natureza íntima da mesma vocação, a sua origem e destino”

Amados, nos próximos textos trataremos de um tema que para mim é particularmente especial, de algo que é extremamente importante e fecundo na vida do cristão, que é o discernimento vocacional. Não sendo eu teólogo ou autoridade no assunto, estarei sempre recorrendo a ajuda de Francisco de Assis[1] com seu exemplo de vida e a algumas colocações teóricas de Amedeo Cencini[2] para amparar e ilustrar o que proponho. Estando eu mesmo vivendo esse tempo de discernimento, é imensa alegria poder dividir algumas das lições que venho aprendendo e que de certo podem e devem ser completadas por outras coisas, mas que ainda sim carregam em si algo de importante para esse tempo tão precioso que muitos de vocês podem estar vivendo. Antes de começar, e já recorrendo a Amedeo como sustento, não pretendo aqui falar do chamado a qualquer vocação específica, mas tratar linhas que sejam úteis a todos vocês, seja na busca de um matrimônio santo, de uma vocação religiosa, de leigo consagrado ou outra, afinal “qualquer que seja a vocação específica de cada um ou o caminho que seja chamado a percorrer, o destino final da sua existência não muda: receber e dar amor. ” (Cencini, 2004: 11).
Para Francisco, nada estava claro, mas tudo estava decidido. Não havia razão para pressas, o Senhor, na sua piedade infinita, abriria as portas e indicaria os caminhos
Neste primeiro ponto nós encontramos com Francisco imediatamente após o seu retorno de Espoleto e de sua experiência com Deus, Francisco que depois da experiência do amor retorna transformado, sabendo que sua vida não é mais a mesma, Francisco que nos introduz o primeiro elemento de qualquer caminhada: a decisão. Convido você a lembrar da sua experiência com Deus, de todo o amor sentido, da aceitação, da plenitude desse encontro e assim trilhar esse caminho com Francisco. Estamos nós aqui, nesse primeiro momento com Francisco recebendo o convite que dá início a nossa caminhada de discernimento, o convite ao amor, a transformar em vida e testemunho a experiência recebida, a corresponder, ainda que de maneira débil, ao amor provado. É notório que o nosso coração se enche de poesia, de uma narrativa cheia de sentimento, de um desejo de ser inteiramente naquele amor, mas esse sentimento necessita, pela própria natureza, se transformar em algo concreto, precisa se tornar algo real, palpável, precisa ser uma decisão pelo amor.
Ratzinger nos diz que “sem verdade, o amor cai no sentimentalismo” e assim nos conduz ao primeiro passo de qualquer caminhada, a decisão inequívoca, apaixonada e irrevogável por transformar o amor vivido e experimentado na verdade mais plena das nossas vidas. Deus, antes de nos revelar as nossas vocações específicas, necessita desse primeiro passo, desse momento em que se faz uma escolha sem volta, desse momento em que a liberdade se realiza de maneira plena ao se transformar em comunhão com a vontade de Deus. O primeiro passo concreto para assumir qualquer vocação é desejar e buscar a configuração com Cristo na oferta total da vida a Deus, no abandono incondicional a sua vontade. Esse primeiro passo é por vezes o mais difícil, porque é onde se exige o primeiro grande rompimento com o mundo, um passo de renúncias, e um primeiro passo num caminho para todos os efeitos desconhecido, mas ainda assim um caminho de liberdade e de amor pleno, de realização. Esse primeiro momento, que tantas vezes nem vemos como uma etapa de discernimento, é essencial para todas as outras, para se ter uma base sólida. É um momento que exige de nós coragem e ousadia para buscar viver em tudo aquilo que Deus deseja, aquilo que diariamente Ele manifesta como sua vontade, mesmo sem entender a que caminho isso nos leva. Deus não está aguardando você entrar num seminário para lhe dar a graça de viver a castidade, Ele não está aguardando que você entre numa congregação para lhe ensinar a como viver uma vida comunitária, não está aguardando que você arranje uma namorada (o) para purificar-te, mas Ele deseja, desde hoje, trilhar um caminho para lhe conduzir a sua vontade, qualquer que ela seja. A única coisa que Ele de fato está aguardando é um coração decidido, amante, desejoso de corresponder ao chamado de Deus no sim de cada dia, que não se prende na falta de conhecimento acerca do que é o amanhã, mas se limita a louvar e amar no dia de hoje.
A vocação não é uma dinâmica de escatologia distante, mas de revelação gradativa, que só se dá mediante a decisão pelo Amor, pela vivência da radicalidade, pelo abraço incondicional ao desconhecido, pela docilidade à condução de Deus. No primeiro momento, nesse começo, eu e você não somos chamados a entender nem a questionar, mas a acolher o hoje e a caminhar, a dar passos concretos através da oração, do testemunho de vida na radicalidade evangélica e da vivência da vontade de Deus na base diária. Eu sei que é difícil, mas mesmo se você ainda não sabe qual o passo adiante é momento de coragem e de abandono, de desejar caminhar e aceitar que Deus lhe leve aonde você precisa ir. Nada é claro, mas tudo deve estar decidido, meu coração está decidido a trilhar esse caminho para onde o vento do Espírito me levar.
            Por isso eu lhe faço um pedido: não espere que Deus lhe mostre tudo claramente para se decidir. Ouse, hoje, mesmo diante do desconhecido, romper com o mundo, com tudo que não condiz com a novidade do amor que você quer viver. Não espere saber se vai ser padre ajudar quem precisa de conselho, não espere casar para ser casto, não espere ser freira para ser uma alma esposa de Jesus, não perca o tempo de amar e no amor descobrir o seu caminho. Hoje é o dia da decisão, hoje é o dia da escuta de Deus, hoje é o dia da oferta, hoje é tudo que tenho. O que vai acontecer e quando vai acontecer está nas mãos da providência de Deus, mas eu tenho o meu hoje para amar. O caminho para a sua vocação começa a ser construído a partir da sua decisão pelo amor hoje.
São Francisco de Assis, rogai por nós para que tenhamos também um coração decidido, radical, desejoso de amar e seguir hoje, e acima de tudo, abandonado a doce condução do Amado as profundidades da nossa identidade expressa pela vocação. Ensina-nos a amar e confiar como tu o fizeste!
Shalom!

Não sabendo nada, não sabe sequer o modo de ser fiel a Deus no dia seguinte. Contenta-se em ser fiel minuto a minuto, abrir caminho passo a passo, golpe a golpe, sem saber qual o passo seguinte; deitar-se hoje à luz das estrelas com a papoula da fidelidade na mão sem saber que a papoula cortará amanhã; abrir os olhos a cada madrugada e pôr-se solitário a caminho para continuar a abrir a rota desconhecida”
 Irmão de Assis – Ignacio Larrañaga



[1] As colocações sobre Francisco serão extraídas do livro “O Irmão de Assis” de Ignacio Larrañaga.
[2] As colocações de Amedeo Cencini serão extraídas dos livros “Quando a carne é débil” (2004).

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