“Por isso, eis que eu mesmo a seduzirei, conduzi-la-ei ao deserto e
falar-lhe-ei ao coração” (Oséias 2, 16)
Amados,
muitas coisas me vêm à mente para os textos que seguirão, mas antes eu
precisava abordar este tema que recentemente tem marcado o meu coração de
maneira tão forte. A Kenosis, palavra grega que quer dizer esvaziamento (ou
despojamento), é um conceito teológico intimamente ligado com o evento que
celebramos em 25 de dezembro e que de certa forma há de sempre permear a nossa
humanidade. Para falar dessa dinâmica, tradicionalmente se utiliza a Epístola
de São Paulo aos Filipenses, uma vez que se fala da Kenosis da qual todas
derivam, a de Deus que se abdicou da transcendência, da omnipotência e da
omnipresença (entre outros atributos divinos), para se fazer homem em Jesus
Cristo e nos resgatar na nossa condição, mas de maneira a aproximar essa
Kenosis da nossa realidade humana, vou utilizar o texto do profeta Oséias (2,
9-22).
Oséias
é, na minha opinião, um dos textos mais belos das Sagradas Escrituras, porque
nele Deus expressa a sua relação com o povo de Israel, com o seu povo, como uma
relação esponsal, que pela própria natureza, nos faz denotar o amor de Deus que
se expressa na personalidade de uma relação íntima de corações com seu povo. O
contexto no geral envolve precisamente a relação do esposo (Deus) com a esposa
infiel (Israel), e os versículos escolhidos falam especificamente do momento da
Kenosis, do esvaziamento necessário para que a esposa consiga enxergar o esposo
por quem ele é. Desde o início vemos a esposa a perseguir os seus amantes sem
os alcançar, a esperar que fossem eles a dar o que ela necessitava sem perceber
que todo o tesouro que lhe era necessário estava na relação com seu esposo (Cf.
Os 2, 9-10). Diante disso a atitude do esposo é particularmente significativa,
ou até mesmo humanamente drástica, uma vez que ele vai tomando gradativamente
de volta tudo que era seu, despojando assim a esposa de tudo que
verdadeiramente não lhe pertencia, esvaziando-a de todos os seus ídolos, falsas
concepções, falsos amores, privando-a até os limites e deixando-a numa situação
de indigência onde nada lhe sobrava de si mesma que não a pura essência (Cf. Os
2, 11-15).
É aí, nessa indigência,
que se manifesta o amor do esposo, que não podia ocupar um espaço que já estava
cheio. Para que o amor do esposo fosse claro, manifesto, reconhecido pelo que
sempre foi, foi necessário que ela perdesse tudo de si mesma, tudo que não era
verdade, tudo que não era essência, foi necessário que todo ruído calasse para
que no deserto fosse reconhecível a voz do esposo que desde sempre desejava lhe
falar ao coração. E a partir desse momento, onde o amor se manifesta, o esposo
é o próprio agente que providencia tudo que é necessário, que restitui todos os
bens uma vez que o bem maior ocupa o seu lugar devido, que toma a esposa
definitivamente para si “na justiça e no direito, no amor e na ternura” (Cf. Os
2, 21). Para fechar a análise exegética, é fundamental notar que a força por
trás das ações do esposo, mesmo das mais privativas, sempre foi o amor, que
incapaz de ser ele mesmo infiel, vai aos extremos necessários para fazer a sua
voz ser ouvida e para cumprir com aquela que é a sua essência, amar a sua amada
e desposa-la nessa relação de amor eterna que tem como recompensa final o
prêmio máximo, o conhecimento do próprio Deus (Os 2, 22).
Amados, é extremamente
interessante a dinâmica da Kenosis como apresentada em Oséias porque ela de
certa maneira ilustra de uma maneira bastante humana a lógica do amor de Deus.
Deus, sendo Senhor de todas as coisas, possuidor de todos os bens, deseja acima
de tudo nos amar, tem como intenção última sempre o amor, mas diante da
realidade do nosso pecado nós necessitamos ser purificados para que nossos
olhos possam enxergar que de fato só Deus basta. O nosso pecado nos faz
simplesmente inverter a ordem que as coisas devem ter em nossa vida, perverte a
nossa liberdade para que pelo caminho nós criemos falsas ideias, falsas
concepções, e mesmo ídolos que terminam por tomar em nossa vida o lugar de
Deus. É interessante notar que em certo ponto a esposa em Oséias deseja
retornar ao seu marido, percebe que com ele era mais feliz, mas a obra da
Kenosis é necessária para que ela encontre esse caminho de volta. A vivência da
plenitude do amor se encontra no contato com o amor de Deus (ternura e amor) e
no seguimento Sua vontade (justiça e direito), mas para chegar nessa plenitude,
é necessário tomar o caminho do deserto, que é o lugar da sedução do encontro e
ao mesmo tempo o cume do despojamento, onde nada mais resta se não a minha
essência e a voz do Amado. A Kenosis vai ser precisamente esse caminho onde a
luz de Deus nós ousamos nos despojar de tudo que nos afaste de Sua presença,
tudo que as vezes eu até penso que é meu, mas que não corresponde a minha
essência enquanto imagem e semelhança de Deus, tudo que eu quero, mas que não é
vontade de Deus. Através da Kenosis, que é iniciativa de Deus mais que
necessita da minha cooperação, nós consentimos que Deus nos ajude a retirar
tudo que há em nós que se encontra fora de sua vontade, todas as coisas,
pessoas, hábitos, entendimentos e qualquer coisa mais, eu concordo que Deus me
despoje de tudo até o ponto em que Ele seja tudo.
Irmãos, a Kenosis, além
de ser a dinâmica do despojamento, é um perpétuo testamento de confiança em
Deus, é o despojamento que muitas vezes exige sofrimento, mas que é acompanhado
por uma profunda confiança de que a vontade do Amado, o encontro com Ele, nos
reservam muito mais do que foi deixado para trás. Essa dinâmica que é
humanamente dolorosa, tantas vezes humilhante e confusa, ao ser acompanhada
pelo olhar da fé nada mais é do que amor, uma condução de amor. Que nós
possamos, confiantes no Amado, acolher com paciência as privações que nos forem
colocadas e buscar com Seu olhar as purificações que necessitamos, para que
assim finalmente possamos encontrar o amor verdadeiro, a felicidade eterna e a
saciedade plena em Sua presença e no seguimento da Sua vontade!
Shalom!
(R. D - Minions Católicos)
Que lindo poder aprender com esses textos!
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