“Vou lhe dizer como deixei de ser dragão” - Reflexões sobre Deus na experiência de Eustáquio com Aslam

Amados, para aqueles de vocês que ainda não leram os livros das Crônicas de Nárnia, esse texto pode parecer um pouco vago, por isso estarei sempre recorrendo a passagens do livro para que possamos manter os nossos olhos fixos no que interessa. O filme “A Viagem do Peregrino da Alvorada” omite essa passagem que hoje iremos refletir (algo que julgo quase criminoso por ser uma das partes mais belas em todos os livros) e para que ela seja compreensível, é necessário falarmos um pouco do personagem de Eustáquio (uma vez que Aslam já vem sido falado nas reflexões anteriores). Eustáquio é um personagem que poderia ser descrito a priori como uma voz pura e simples do racionalismo secular, um jovem que encontra sua sabedoria em livros cheios de fatos e cujo limite de contemplação é aquilo que pode ver e tocar, considerando tudo mais ou como não existente ou simplesmente inútil. Frequentemente arrogante e obtuso, Eustáquio se divertia e simplesmente zoava seus primos quando se referiam a terra de Nárnia, incapaz de ir além dos pobres limites factuais e empíricos. Este nosso jovem, juntamente com Lúcia e Edmundo, vai parar em Nárnia, numa aventura que desafia tudo que acredita e que diante do desconhecido o faz acentuar o seu comportamento arrogante para com todos os outros, aumentando suas ilusões de autossuficiência e independência. Eustáquio poderia muito bem ser a imagem do ateu moderno. Mas em um determinado ponto de sua aventura, levado pela sua ganância, o menino encontra o tesouro de um dragão de adormece sobre ele, fazendo com que o mesmo se transforme em um dragão, mantendo um bracelete do tesouro preso em sua pata que o machucava constantemente.
Ao se transformar em dragão, se ver em tantas maneiras diferente e dependente dos outros, Eustáquio começa um longo processo interior de reconhecimento da sua condição, de como havia sido detestável com sua família e amigos, um péssimo ser humano no geral, e na solidão de sua condição desfigurada, se entristece. Nesse momento, podemos ver que o menino começa a “cair em si” (Lc 15, 17) e desejar fazer seu caminho de volta para a sua humanidade (ainda que de maneira diferente). Este é o ponto de partida.
“- Bem, na noite passada eu estava mais infeliz do que nunca. Esse bracelete horrível me machucava como o quê...
- Não machuca mais?
Eustáquio sorriu – um sorriso diferente daquele que Edmundo conhecia – e facilmente deslizou o bracelete para fora do braço.
- Aqui está – disse Eustáquio – Se alguém quiser, fique com ele. Mas como ia dizendo, estava ali deitado, pensando na minha vida, quando de repente..., Mas, pense bem, pode ter sido um sonho, não sei...
- Continue – disse Edmundo, com uma paciência espantosa.
- Bem, seja lá como for... olhei e vi a última coisa que esperava ver: um enorme leão vindo avançando para mim”[1]

Esse é um momento para refletirmos no primeiro ponto: Deus sempre vem ao nosso encontro. É incrível contemplar isso porque nesse momento da vida de Eustáquio ele não era nem de longe o seu melhor, era desfigurado pela forma de um dragão, profundamente triste ao refletir na sua vida, quase sempre só por ser o tipo de criatura que causa medo nos outros, e mesmo assim Aslam vai ao seu encontro (lembrando sempre que Aslam é a figura de Jesus). Nesse momento, vemos o Deus que não se move pelo mérito ou pela perfeição humana, mas move-se pela sua própria compaixão, vemos o Deus cujo coração se permite transpassar pela miséria humana. Isso vem a nos falar muito acerca de nós mesmos. Nós as vezes no meio da caminhada, da nossa busca de nos unirmos a Deus em santidade, temos a tentação de achar que Ele é distante quando nós não correspondemos da maneira como gostaríamos e nos esquecemos que Ele é esse Pai que sempre vem ao encontro, que toma a iniciativa, que vem a nós não por quem somos, mas por quem Ele é. Mesmo diante de tudo que carregamos, das besteiras que fazemos, mesmo quando nos encontramos nos buracos mais profundos, Ele sempre vem. Nosso Amado só possui uma verdadeira limitação: Ele não consegue deixar de lhe amar e lhe buscar, onde quer que você esteja.
“No meio do jardim havia uma nascente de água. Vi que era uma nascente pois a água brotava do fundo, mas era muito maior que a maioria das nascentes – parecia uma grande piscina redonda para a qual se descia em degraus de mármore. Nunca tinha visto água tão clara e achei que se me banhasse ali talvez passasse a dor na pata. Mas o leão me disse para tirar a roupa primeiro. (...). Assim comecei a esfregar-me e as escamas começaram a sair de todos os lados. (...). Num minuto ou dois fiquei sem pele. Estava lá no chão, meio repugnante. Era uma sensação maravilhosa. Comecei a descer à fonte para o banho. Quando ia enfiando os pés na água vi que estavam rugosos e cheios de escamas como antes. (...) Então o leão disse “eu tiro a sua pele”. Tinha medo daquelas garras, mas ao mesmo tempo, queria me ver livre daquilo. Por isso me deitei de costas e deixei que tirasse a minha pele. A primeira unhada que deu foi tão funda que julguei ter me atingido o coração. E quando começou a tirar-me a pele senti a pior dor da minha vida. A única coisa que me fazia aguentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. (...) E ali estava eu também, macio, delicado como um frango depenado e muito menor do que antes. Nessa altura agarrou-me e atirou-me dentro da água. (...). Quando comecei a nadar, reparei que a dor no braço havia desaparecido completamente. Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente. ”

Para continuar nossa reflexão vamos partir de mais alguns pontos: o encontro com Deus requer despojamento e nós por nós mesmos não somos capazes de nos purificarmos. Para que possamos chegar a Deus, a sua vontade, a comunhão com Ele, é necessário que nós também “tiremos a roupa”, que nos despojemos de nós mesmos, das nossas concepções humanas, dos nossos caprichos e até mesmo daquilo que nos é mais caro: a nossa vontade. Enquanto as escamas do que é velho continuarem a permanecer nós estaremos sempre na borda desse mar de água viva incapazes de alcançar o mais profundo. Para isso, é necessário a cooperação da nossa vontade, que nós, mesmo que de maneira débil, sejamos como Eustáquio e tenhamos a disposição do buscar a purificação, de nos esfregarmos e nos debatermos para nos livrar de tudo aquilo que nos impede de alcançar a plenitude da nossa liberdade que é a comunhão com Deus. Obviamente, que também como Eustáquio, vamos ter a experiência de que nossos esforços não são suficientes e precisaremos reconhecer que a primazia é, e precisa ser, da graça e da misericórdia de Deus. Nós vamos sempre chegar no ponto de perceber que a misericórdia é que nos conduzirá ao encontro mais profundo com Deus, pois somente Ele é capaz de nos purificar com seu amor. Lewis magistralmente coloca o primeiro golpe das garras de Aslam para atingir o coração e aí vemos a imagem de Deus que deseja nos dar um coração novo (Ez 36, 26), que com a sua misericórdia nos dá um coração de carne a partir do momento em que nos permitimos ser tocados pelo seu amor. Isso nos leva a ver que é preciso sim o comprometimento e a decisão da nossa liberdade, o nosso desejo de santidade, mas que é necessária sempre a humildade de se deixar atingir pelo amor, pela misericórdia e pela graça santificante do nosso Deus que nos transforma sempre em novas criaturas.
“Seria bonito, e muito próximo da verdade dizer que, dali em diante, Eustáquio mudou completamente. Para ser rigorosamente exato, começou a mudar. Às vezes tinha recaídas. Em certos dias era um chato. Mas a cura havia começado. ”

Finalmente, e acho que o mais importante, precisamos perceber que na nossa humanidade, esse processo que vemos é constante. Nós constantemente nos vemos caindo, Deus constantemente nos busca, nós precisamos sempre nos esforçar para nos despojarmos de nós mesmos e fazer a nossa liberdade plena na vontade de Deus, Ele, sempre que permitirmos, virá para ir nos transformando com seu amor e misericórdia. Para nós, é preciso como o Moysés diz “coragem, renúncia e disposição” (Escrito Obra Nova, Escritos da Comunidade Católica Shalom), mas também muita paciência diante das nossas limitações e fé ardente nesse Deus que sempre vem, sempre ama e que deseja purificar com a permissão da nossa liberdade.
Shalom!

(R. D - Minions Católicos)



[1] Essa e todas as citações em itálico são extraídas do livro A Viagem do Peregrino da Alvorada in As Crônicas de Nárnia.

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