A eucaristia e a transformação da celebração ao longo dos anos

“No sacramento do altar, o Senhor vem ao encontro do homem, criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), fazendo-Se seu companheiro de viagem. Com efeito, neste sacramento, Jesus torna-Se alimento para o homem, faminto de verdade e de liberdade.” (Sacramentum Caritatis)

"Durante a refeição, Jesus tomou o pão e, depois de o benzer, partiu-o e deu-lho, dizendo: Tomai, isto é o meu corpo. Em seguida, tomou o cálice, deu graças e apresentou-lho, e todos dele beberam. E disse-lhes: Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos." (Marcos, 14, 22-24). E neste dia, nessa última ceia Jesus instituiu o sacramento da Eucaristia. Celebramos a Eucaristia na santa missa, relembrando o sacrifício do cordeiro, “Fazei isto em memória de mim! ”. Em cada Missa é preciso de manifestar perfeitamente a doutrina católica através de suas orações e rituais, trazendo assim a autenticidade da liturgia para honrar e glorificar a Deus, expiar os homens de seus pecados, e agradecer a Deus pelas graças que Ele concedeu ao mundo.
Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne que Eu darei pela vida do mundo” (Jo 6, 51), com essas palavras Jesus apresenta sua missão, de salvador de todos os povos. E ao renovarmos esse sacrifício a cada celebração eucarística, “a igreja recorda ao mundo que entre Deus e o homem existe uma amizade indestrutível, graças ao amor de Cristo, que, oferecendo-Se, venceu o mal. ” (Lineamenta, Sínodo dos bispos). Recordar esse sacrifício é relembrar do imenso amor que Deus tem por nós, a ponto de nos dar seu filho para morrer por nós, é vivenciar a paixão e morte de Cristo e sua vitória sobre a cruz na Ressurreição.
“Desde as múltiplas formas dos primeiros séculos, que resplandecem ainda nos ritos das Antigas Igrejas do Oriente, até à difusão do rito romano; desde as indicações claras do Concílio de Trento e do Missal de São Pio V até à renovação litúrgica querida pelo Concílio Vaticano II: em cada etapa da história da Igreja, a celebração eucarística, enquanto fonte e ápice da sua vida e missão, resplandece no rito litúrgico em toda a sua multiforme riqueza. ” (Sacramentum Caritatis). Daí a importância de entendermos e vivenciarmos os ritos da liturgia, percebendo a riqueza em cada ação. E sabermos também, que muitas modificações foram feitas durante esses anos.
O sacramento da Eucaristia, nos faz pensar em Cristo e Igreja, e como eles são indissolúveis, não existe um sem o outro. A Igreja nasce do lado aberto de Cristo na cruz, a Eucaristia é instituída em sua última ceia com seus amigos, e por isso a antiguidade cristã designava com as mesmas palavras — corpus Christi — o corpo nascido da Virgem Maria, o corpo eucarístico e o corpo eclesial de Cristo (Sacramentum Caritatis). Pensemos então, que a Eucaristia é constitutiva do ser e do agir da Igreja.
Falemos então da história. A liturgia nasceu em Jerusalém, lembremos das primeiras comunidades nascidas a partir da evangelização dos apóstolos. Mas percebam que muitos foram aqueles que começaram a seguir os ensinamentos de Cristo, e muitas realidades existiam, por causa disso a vida litúrgica foi se adequando a essas realidades, logo surgindo uma grande diversidade na liturgia, “sem por isso se fragmentar, o que só prova que ela, a Liturgia, era realmente a expressão viva da oração de cada uma dessas Igrejas”. E por muito tempo foi assim.
Porém, com o passar do tempo, as necessidades foram se tornando outras. A própria realidade das comunidades, costumes e tradições, fizeram a liturgia deixar de ser uma novidade para ser um legado, para ser herança deixada de geração em geração. Então a partir do século VIII-IX, a língua latina é mantida na Liturgia, porém deixou de ser compreendida pelo povo, o que foi uma grande causa de afastamento do povo em relação à Oração da Igreja. Em decorrência disso, a oração litúrgica passou a ser cada vez mais oração dos clérigos, que tomaram a frente da liturgia, com participação ativa e direta, ao povo reservou-se o papel de assistente, saindo de assembleia celebrante para assembleia assistente. Todos nós temos uma grande dificuldade em comunicar-se caso seja em uma língua que não conhecemos profundamente. Imagine então para aquelas pessoas que viviam em oração, que estavam vivenciando o mistério pascal, mas que num dado momento passam a não mais entender as orações realizadas durante as celebrações. E então isso torna-se um problema.
Vivenciar liturgia é participar dela. Participar é ouvir e ver. Então a partir do século XIII nasce a elevação da hóstia e do cálice, e as genuflexões do celebrante em plena oração eucarística, e inicia a grande devoção ao ver a hóstia consagrada. Mas quase não se comungava, sendo necessário que aparecesse o preceito da comunhão anual, pela Páscoa no ano de 1215. O povo rezava muito, mas a margem da liturgia ou sobreposta a ela, pois como eles já não mais a entendiam, para eles não representava mais a sua oração. Daí, surgiram inúmeras orações recitadas pelos fieis, ou pelos próprios ministros, intercaladas durante os textos da celebração, algumas permanecendo até hoje.
Em decorrência de tanta diversidade, e do afastamento do povo da liturgia, o Concílio se reuniu em Trento (1545-1563), para uma reforma na liturgia. Eram muitos os abusos durante a celebração Eucarísticas, porém o Concílio não ocupou-se diretamente da liturgia, mas as definições dogmáticas sobre vários pontos da fé cristã não podiam deixar de trazer implicações litúrgicas. O Concílio propôs-se reencontrar a Tradição genuína da Liturgia, reconduzindo-a norma dos Santos Padres, buscaram então elementos da história da liturgia dos primeiros séculos, e iniciou-se uma revisão dos livros litúrgicos. Porém a reforma litúrgica tridentina não fez muito além da reforma dos livros, que foram publicados ao longo dos 50 anos seguintes. Os livros litúrgicos do século XVI eram fundamentalmente livros dos ministros da Liturgia, e quase exclusivamente do presidente, da assembleia pouco se falava.
Diante desse quadro que estava se agravando, em 1909 foi proclamado, quase oficialmente, o Movimento litúrgico, com méritos ao dinamismo espiritual de D. Lambert Beauduin (1873-1960), antigo capelão de mineiros, que tornou-se monge beneditino do recente mosteiro de Mont- César (1899). O movimento tinha por objetivo fazer com que o povo cristão participasse ativamente da celebração da liturgia. Este movimento tinha sólidos alicerces na palavra enérgica do grande pastor que foi S. Pio X (1904-1914). Seu primeiro grande documento pontifical, o Motu proprio sobre a Música sacra, apresentava a participação dos fiéis nos mistérios da Liturgia como a fonte primária e indispensável do espírito verdadeiramente cristão, palavra que o Concílio Vaticano II fez sua e introduziu na Constituição sobre a Sagrada Liturgia (SC 14). Esse movimento cresceu bastante durante a segunda Guerra Mundial pois se via a necessidade de levar Deus aos fiéis, como uma esperança, fazendo-os assim participar mais ativamente da liturgia.
Pio XII (1938-1958), também teve papel fundamental no processo de reforma, lançando as raízes doutrinais para as futuras grandes reformas. As encíclicas Mystici Corporis sobre a Igreja, Corpo místico de Cristo (1942), e Mediator Dei sobre a Liturgia (1947) foram marcos muito importantes na pré-história próxima da reforma litúrgica. Percebam então, que foi Pio XII quem começou a reforma da Liturgia. Todos esses documentos e movimentos foram de grande importância para o grande momento que aconteceria no Concílio Vaticano II.
Depois dessa movimentação de Pio XII, João XXIII mandou publicar o novo Codex Rubricarum, que simplificava muito certas normas da celebração, anunciando que a reforma estava por vir. E daí foi dado o grande passo para o Concílio Vaticano II, que o mesmo Papa havia de inaugurar no dia 11 de outubro de 1962 e cujo primeiro fruto foi precisamente a Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia. Em 4 de Dezembro de 1962 faria 400 anos que terminara o Concílio de Trento, colocando nas mãos do Papa de então, S. Pio V, o Breviário e o Missal reformados, com o pedido de que quisesse mandá-los publicar e mandar em seguida preparar a reforma e a publicação dos restantes livros litúrgicos. E assim, 400 anos depois seria retomada a obra então começada.
E por que o Concílio? Por que a reforma? A liturgia já não estava sendo mais para o povo, não era mais a Oração da Igreja, pois a Igreja era todo o povo de Deus, e este povo já não mais vivenciava com fervor a liturgia. Os fieis já não participavam, pois já não tinham o mesmo olhar do início das comunidades cristãs.
Olhem o que diz a constituição dogmática Lumen gentium: “A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano, pretende ela, na sequência dos anteriores Concílios, pôr de manifesto com maior insistência, aos fiéis e a todo o mundo, a sua natureza e missão universal. ” Diante disso, viu-se essa necessidade de grande reforma, para aproximar o povo, para trazer o povo mais uma vez para perto de Deus.
E assim, hoje podemos vivenciar a grande riqueza na liturgia da santa missa. Onde podemos a cada celebração, relembrar o santo sacrifício. Onde vemos no altar o cordeiro sendo imolado, o sacerdote como pessoa de Cristo. Ninguém pode dizer “isto é o meu corpo” e “este é o cálice do meu sangue” senão em nome e na pessoa de Cristo, único sumo sacerdote da nova e eterna Aliança. E percebemos assim a importância do sacramento da ordem, e sua grande ligação com a sagrada Eucaristia.
Encerro assim esse texto, trazendo uma citação da Exortação Apostólica Pós-sinodal Sacramentum CaritatisÉ necessário viver a Eucaristia como mistério da fé autenticamente celebrado, bem cientes de que ‘a inteligência da fé (intellectus fidei) sempre está originariamente em relação com a ação litúrgica da Igreja’:(105) neste âmbito, a reflexão teológica não pode prescindir jamais da ordem sacramental instituída pelo próprio Cristo; por outro lado, a ação litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo do mistério da fé. Com efeito, a fonte da nossa fé e da liturgia eucarística é o mesmo acontecimento: a doação que Cristo fez de Si próprio no mistério pascal.
Graça, Redenção e Paz!


(Madalena Nascimento - Minions Católicos)

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