Amados, depois de muito tempo ponderando e estudando,
decidi finalmente dedicar algumas palavras ao mundo da Terra Média criado por
J.R.R. Tolkien, que envolve em si uma teologia profunda no tecido das
narrativas que começam na canção dos Ainur e nos conduzem com Frodo as chamas
da Montanha da Perdição. O próprio Tolkien nas suas inúmeras cartas, afirma que
o Senhor dos Anéis, e por conseguinte todo o mundo da Terra Média, constituem
um trabalho “fundamentalmente religioso e
católico” (Carta 142) e por isso hoje vamos adentrar no começo da jornada
de Bilbo Bolseiro no Hobbit, usando a
ficção de Tolkien para explorar o conceito do jovem-sofá apresentado pelo Papa
Francisco durante a JMJ da Cracóvia.
“Numa toca no chão
vivia um hobbit” é a frase que inicia o primeiro capítulo do Hobbit e que
se tornou famosa na literatura do século XX e nas telonas do cinema
recentemente com o lançamento da trilogia, frase que começa a introduzir a vida
de um hobbit em particular, Bilbo Bolseiro. Embora a descrição formal dos hobbits
ocorra apenas no Senhor dos Anéis, Tolkien descreve com detalhes vivos a toca e
o estilo de vida de Bilbo, um hobbit na época jovem (afinal, a maioridade dos
hobbits é aos 33 anos e Bilbo tinha pouco mais de 50) que vivia numa toca
confortável, onde não faltava comida e bebida, com cômodos espaçosos, belos
moveis polidos e um jardim longo que ia até o rio. Bilbo estava perfeitamente
contente em viver a sua própria vida, aproveitar os seus bens, e se deixado por
si mesmo, viveria a sua vida inteira naquele mesmo ritmo que envolvia várias
refeições ao dia e tardes tranquilas ao sol soltando anéis de fumaça com seu
cachimbo, afinal, sua família desde sempre era conhecida por “nunca ter tido nenhuma aventura ou feito
nada de inesperado”. Bilbo, em resumo, vivia completamente voltado para si
mesmo, servindo a si mesmo, vivendo para si mesmo, completamente alienado ao
mundo a sua volta e detestando qualquer coisa que o deslocasse desse eixo de
conforto, afinal, aventuras são “desagradáveis
e desconfortáveis! Fazem com que você se atrase para o jantar! ”.
Confesso que quando ouvi as palavras do Papa Francisco
pela primeira vez na Cracóvia eu não fiz a relação, mas hoje vejo em Bilbo a
descrição perfeita daquilo que o Papa chamou de “jovem sofá”, um jovem incapaz
de se doar, de viver por qualquer coisa maior do que si mesmo, apegado aos
confortos materiais da casa, do emprego, alienado as necessidades do outro,
numa incessante busca hedonista do prazer (que no caso de Bilbo se dava muito
claramente na gula) e na rejeição completa do sacrifício, de tudo aquilo que
possa gerar desconforto. Curioso irmãos, quantas vezes não somos como Bilbo?
Quantas vezes não nos deixamos envolver no individualismo, na busca pelo nosso
bem somente nos esquecendo do outro? Quantas vezes não desejamos uma vida cheia
de confortos e sem dificuldades, onde tudo vá ser um mar de rosas e teremos
tudo que sonhamos facilmente? Quantas vezes não desejamos simplesmente
satisfazer as nossas vontades e desejos sem nos importar com o impacto disso
nos outros? Ou mesmo, quantas vezes eu não vivo uma fé individual, que é para o
meu prazer, para meu consolo e não para servir a Deus e ao outro? Amados
irmãos, a obra de Tolkien é bela porque nela podemos encontrar cada um de nós,
pois em cada um de nós, ainda que no mais íntimo, existe a tentação de ser o
Bilbo do começo da história, de ser o jovem sofá, de fugir da única certeza
terrena que é a Cruz que nos conduz a eternidade.
Em meio aos confortos de Bilbo entra o tema chave da obra
de Tolkien, o Homo Viator, ou homem a
caminho. Toda a obra de Tolkien no Hobbit
e no Senhor dos Anéis tem por
foco o homem peregrino, a caminho, que se dispõe a seguir a Cristo no caminho
do Calvário. É interessante porque de início, ao receber o chamado da aventura,
da saída de si mesmo, do viver por algo maior, Bilbo nega simplesmente, mas na
medida que começa a inesperada festa dos anões em sua casa e começa-se a
discutir os planos da aventura rumo a Erebor, Bilbo começa a ser intimamente
interpelado pela aventura, começa a desejar ver as coisas que estão além do
alcance dos seus olhos e do conforto do seu lar, a sentir o apelo do
transcendente. Aí também nós somos como Bilbo, pois no fundo de cada um de nós
existe o desejo íntimo de viver algo maior, maior que nós mesmos, existe o
desejo pelo transcendente e de entrar nesse caminho rumo ao mistério que se
chama vontade de Deus. E, mesmo diante de suas inseguranças, Bilbo se lança,
decide corresponder ao que era suscitado no seu coração, faz a transição do
jovem sofá para o Homo Viator e
assume para sua vida essa nova aventura que o tira da sua zona de conforto, do
apego aos seus bens, e que o introduz na lógica do sacrifício, do dom de si
mesmo, e também da contemplação da beleza do que existe nesse caminho que nos
conduz a eternidade.
Irmãos, também nós somos chamados a fazer esse caminho, a
nos deixar interpelar pelo transcendente, pelo nosso Deus que deseja nos tirar
do sofá e nos dar tênis para ir a caminho, a caminho da Sua vontade, a caminho
da humanidade que geme e sofre aguardando a manifestação dos filhos de Deus! O
conforto, as posses, o prazer, apelam a nossa carne e desejam fazer com que
permaneçamos alienados do outro e da nossa verdade, mas não nos deixemos
enganar! Não há promessa de ressurreição no conforto! A promessa da ressurreição
está na Cruz, na oferta de vida, na adesão plena da liberdade à vontade de
Deus, no pôr-se a caminho. Tenhamos, como Bilbo, a coragem de sair de nós
mesmos e aderir a aventura que Deus nos propõe, de “seguir a loucura do nosso Deus”
(Papa Francisco) que nos coloca num caminho de oferta e de eternidade, de Cruz
e ressurreição.
(Rodrigo
Damásio - Minions Católicos)
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