Amados, hoje vamos falar das feridas, dessa realidade que
faz parte integralmente da verdade da nossa humanidade. Todos nós, em algum
ponto da nossa história, já fomos feridos e também ferimos aqueles que amamos,
nossa humanidade é cheia de feridas abertas e profundas. Contudo, as feridas
são realidades que muitas vezes preferimos ignorar, deixar para depois, ou
mesmo fingir que elas não existem em nome das aparências. Tantas e tantas vezes
maquiamos as nossas feridas, nos escondemos, e tentamos criar uma verdade
alternativa onde elas não existem, não fazem parte de nós, caímos no farisaísmo
de buscar a aparência da perfeição e transformamos as feridas em algo que nos
fecha em nós mesmos. Hoje quero refletir com vocês como as feridas podem ser,
dependendo de como as enfrentamos, um lugar de separação ou de encontro.
Primeiramente, e acho que acima de tudo, a negação das
feridas (ou não conhecimento das mesmas) me separa de mim mesmo. Mas porque a
negação das feridas me separa de mim mesmo? Porque negar que sou ferido é, pura
e simplesmente, mentir. Ao negar as minhas feridas eu sou obrigado a negar uma
parte da minha condição, daquilo que fez (ou faz) parte da minha vida, sou
obrigado a romper com aquela que é a minha verdade. Às vezes é tão conveniente,
não é? Negar certas coisas que fizemos ou que aconteceram conosco, negar o que
sentimos para manter as aparências, maquiar as dores, ou mesmo mentir para
criar uma imagem de mim mesmo que não seja desfigurada pela minha verdade. Cada
vez que faço isso, seja em nome da conveniência ou da facilidade, eu vou
rompendo comigo mesmo, e na medida que penso me esconder e aparentar ser
perfeito, me desfiguro mais, as vezes ao ponto de nem mais reconhecer a mim
mesmo sem as máscaras que coloco na frente dos outros. Negar as minhas feridas
é fugir de mim mesmo, fugir da essência em nome da aparência, e é ao mesmo
tempo uma fuga do outro. Porque uma fuga do outro? Porque se as minhas feridas
não são aceitáveis, certamente as dele também não o são. Ao negar a verdade das
minhas feridas e criar para mim uma imagem de perfeição, eu automaticamente
rejeito também as feridas do outro, rejeito a verdade do outro, crio uma
desculpa para me distanciar, afinal, porque eu, o perfeito e imaculado, me
misturaria com essas criaturas desfiguradas? O contato da minha ferida,
maquiada e oculta, com a ferida aberta, profunda e purulenta do outro é um
choque tão violento que eu, negando minhas feridas, não aguentaria! E por isso
me distancio, afasto o outro de mim, o vejo como oposto ao que sou e represento.
Negando as minhas feridas, me afastando de mim mesmo e do outro, termino por me
afastar também de Deus.
De fato, aquele que não é ferido, não consegue conceber o
Deus misericordioso e compassivo que se revela em Jesus Cristo. Ao negar as
minhas feridas eu assumo o lugar dos Fariseus, daqueles que aos pés da cruz
escarneciam o Deus chagado de amor que se entregava, porque afinal, se eu não
sou ferido, que tipo de Deus é esse que se deixa ferir? Eu, que sou homem, ao
negar minhas feridas, assumo uma imagem de Deus que julga, que pune, que não
aceitaria minha imperfeição, e ao mesmo tempo assumo o papel de juiz da
humanidade imperfeita e chagada. Amados, para me aproximar de Jesus Cristo, eu
não posso negar as minhas feridas, não posso negar que sou pecador, pequeno, e
não posso cair no pensamento de que os outros são mais pecadores que eu, porque
eu seria capaz de fazer absolutamente tudo que eles fizeram! Ao negar minhas
feridas, nego a minha verdade, e fecho meu coração a misericórdia, tanto de
Deus para comigo quanto minha para os irmãos!
Ao mesmo tempo, ao reconhecer a ferida na minha
humanidade, a minha vida se abre, se dilata para receber o outro no irmão, e
mais ainda o Outro em Jesus, no Deus que nem após a ressureição nega as suas
feridas, mas mostra na sua Paixão um caminho que redime, transforma as feridas
do homem. Os Padres da Igreja costumavam dizer que “aquilo que não foi
assumido, não pode ser redimido” e isso nos atinge profundamente! Se eu não
assumo as minhas feridas, se eu não busco conhecer a mim mesmo na completude
das minhas marcas, se eu não sou consciente da minha verdade, ela não pode ser
redimida. Mas se eu reconheço que eu mesmo sou chagado, que eu mesmo sou ferido
e necessitado de perdão, eu entro no movimento dinâmico da misericórdia, desse
amor que se move na direção do miserável, e abraça, perdoa, restaura a
dignidade e convida a uma vida nova. No corpo ressuscitado de Jesus nós podemos
ver as feridas que se fazem lugar não de separação, mas de encontro, de
encontro profundo! Nas chagas do Ressuscitado que passou pela Cruz nós podemos
ver que as chagas da humanidade, quando assumidas, são transfiguradas em
verdadeiros diamantes, como dizia Santa Hildegarda Von Bingen, são banhadas
pelo amor de Deus que se entregou inteiro, que se deixou ferir para que de seu
coração aberto jorrasse a paz e a salvação.
Ao reconhecer a existência das minhas feridas,
conhece-las, chama-las pelo nome, eu posso inseri-las no coração aberto de
Cristo e fazer delas um lugar de encontro com Ele e com os meus irmãos. Ao
admitir as minhas feridas eu assumo a completude da minha verdade e sou capaz
de enxergar no outro alguém que também é ferido, sou capaz de enxertado nas
chagas de Cristo, fazer com que das minhas feridas jorre compaixão! O
reconhecimento da minha verdade me lança num movimento de saída, me arremessa
na imensa e bela aventura da misericórdia, da ferida como encontro com o outro
e do desejo de leva-lo também ao coração divino de onde jorra sempre o amor, o
perdão e onde nós somos transformados. Um coração que com coragem se dispõe a
mergulhar as suas feridas, toda a sua verdade, no lado aberto de Cristo se
transforma num coração missionário, doador de misericórdia!
Hoje amados, convido todos a olhar para as feridas, para
as dores, para tudo aquilo que nos marcou e ver o que estamos fazendo. Será que
a minha ferida está maquiada e oculta e eu estou negando a minha verdade? Ou
será que, na experiência com as chagas do Ressuscitado eu sou capaz de assumir
a minha verdade e me lançar ao encontro do outro? Que o Ressuscitado que passou
pela Cruz possa nos ajudar a mergulhar dentro de nós mesmos para conhecer e
assumir a nossa verdade e assim tomar posse da misericórdia que flui de Seu
lado aberto, para nós e para toda a humanidade!
(Rodrigo Damásio - Minions Católicos)
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